Aos 59 anos, ídolo do São Paulo, da Seleção Brasileira e do Paris Saint-Germain tornou-se mestre em políticas públicas em uma universidade renomada da França. Ao g1, ele fala dos objetivos e dos desafios de escrever uma dissertação sobre a importância das atividades lúdicas para a sociedade. E compara tudo com futebol, claro. Ex-jogador Raí conclui mestrado em políticas públicas: 'Queria provocar meus neurônios'
O que é mais difícil?
a) Apresentar um trabalho para 5 pessoas.
b) Jogar uma partida decisiva de futebol diante de 120 mil torcedores.
Para o ex-jogador Raí, ídolo do São Paulo e da Seleção Brasileira, não há diferença no nervosismo. “É igualzinho: a boca fica seca, a gente treme, não dorme na véspera e chega cedo para se concentrar”, conta.
Aos 59 anos, em entrevista exclusiva ao g1, o atleta descreveu sua trajetória acadêmica na Universidade Sciences Po, em Paris, onde concluiu o mestrado em políticas públicas no início de junho.
Falou ainda, como você poderá ver ao longo da reportagem:
da possibilidade de, depois de se aposentar como jogador, passar a se dedicar aos estudos;
do seu forte lado político (que veio de berço, segundo ele), dos projetos sociais e do combate a governos de extrema direita;
do espírito de liderança que o tornou basicamente um “capitão” da classe;
do sucesso que fez entre colegas e professores na França (foram muitas fotos e autógrafos);
da postura dos jogadores atuais do futebol brasileiro (de Neymar a Vini Jr.);
e, entre outros tópicos de um papo de mais de uma hora, da intenção de implementar o projeto do mestrado em uma cidade pequena do Nordeste.
??Raí desenvolveu uma pesquisa sobre a importância de universalizar o acesso da população a atividades lúdicas e criativas. Segundo as conclusões da dissertação, em vez de o esporte, o teatro e a dança serem vistos como “não essenciais” pelos governos, deveriam ser disponibilizados de forma abrangente, para crianças, adultos e idosos:
melhorarem o desempenho cognitivo e físico;
aprenderem novas formas de expressão;
ocuparem espaços públicos;
socializarem mais
e até fortalecerem a democracia (“a primeira coisa que um governo de extrema direita ataca é a cultura, porque ela junta pessoas, abre a cabeça delas e estimula o espírito crítico”, diz o jogador).
????Capitão da turma, Raí precisou ‘driblar as dificuldades’
Raí é ídolo do São Paulo após vestir a camisa do clube por quase 10 anos, em duas passagens pelo clube
Acervo TV Globo
O mestrado foi uma jogada planejada, mas que exigiu jogo de cintura para superar os adversários.
“Eu chutava mal de esquerda, né? E trabalhei isso no futebol. Foi assim na universidade também: precisei encarar minhas limitações de estudo, todas as bases literárias que eu não tinha, e driblá-las. Porque drible é isso, é o improviso. Mas foram improvisos com base nas minhas convicções. Isso diminuiu o risco”, conta o ex-atleta.
Nos dois anos de curso, com aulas em francês, Raí foi se tornando o “capitão” da classe. A tática (ou instinto) foi a mesma adotada no São Paulo e na Seleção Brasileira: “Eu chego a um lugar, preciso me adaptar, mas depois acabo virando o líder. Nunca é no começo; é um processo de sedução. Você conquista a confiança dos outros, a sua também, e, com amor, sem grito, faz com que as pessoas te respeitem e te ouçam”.
Será que foram muitos autógrafos e fotos distribuídos entre os colegas e professores, principalmente torcedores do Paris Saint-Germain (clube em que Raí jogou de 1993 e 1998)? Certamente. Mas até quem não gostava tanto de futebol encantou-se por Raí. Em uma das aulas, por exemplo, cada aluno da turma deveria apresentar uma situação de superação de crise de uma instituição.
????O que você, leitor, falaria? De uma briga com o chefe? De um problema financeiro na empresa onde trabalha? O ex-jogador analisou nada menos do que sua experiência na Copa de 1994, quando o Brasil conquistou o tetracampeonato mundial. “Apelei”, brinca.
E um bastidor: Raí garante que o grupo do “zap” com o pessoal da universidade ainda vai servir para marcar muitas festas. “Falo até hoje com os amigos do São Paulo, do PSG e da Seleção Brasileira. Vai ser a mesma coisa”, diz.
????Paulistão, Libertadores e Mundial x Mestrado, doutorado e 'pós-doc'
Raí fez mestrado na Sciences Po, em Paris
Reprodução/Instagram
Raí já conquistou uma grande tríade no futebol paulista, quando ganhou três importantes campeonatos pelo São Paulo em 1992. Será que um outro pacote de vitórias pode vir nos estudos também, com um doutorado e um pós-doutorado após a conclusão do mestrado?
Ele faz mistério, mas deixa claro que sua intenção vai muito além de colecionar diplomas e de ter títulos (acadêmicos): quer “mexer os neurônios” e se aprofundar mais na área de políticas públicas.
Raí sempre teve uma forte ligação com temas sociais, e a Fundação Gol de Letra, que fundou em 1998 para apoiar a educação de crianças e jovens, continua uma referência para ONGs brasileiras.
“Como atleta, fiquei meio limitado, sem poder desenvolver o lado acadêmico. E minha motivação social é quase de berço, né? Olha os nomes dos meus irmãos: Sócrates, Sófocles e Sóstenes [filósofos gregos]. Já cria uma inquietação intelectual”, afirma, rindo.
????Como estimular outros jogadores a seguir o caminho de projetos sociais?
Raí criou a Fundação Gol de Letra, projeto social de apoio a crianças e jovens no Brasil
Christian Gavelle/Divulgação
Os ex-jogadores Daniel Alves e Robinho, por exemplo, foram condenados neste ano por crimes sexuais. Outros atletas, como Neymar e Éder Militão, também viraram notícia por declarações polêmicas. O que falta para que mais ídolos do esporte sigam um caminho semelhante ao de Raí?
“Precisam ser estimulados e ter referência. Eles começam a morar nos clubes muito cedo, com 12 ou 13 anos, e necessitam de formação. Mas vejo que agora a sociedade cobra mais da postura [dos jogadores]”, afirma Raí.
“Estamos evoluindo aos poucos: o Vini Júnior, por exemplo, está fazendo uma revolução e se tornando um grande líder de resistência, de luta, de coragem. Ele recebe pouco apoio incisivo dos colegas, mas está influenciando as novas gerações.”
????Raí quer transformar cidade do Nordeste em ‘grande Sesc’
Raí quer implementar projeto de ludicidade em município pequeno do Nordeste
Christian Gavelle/Divulgação
No mestrado, como explicado no início da reportagem, o ex-jogador estudou a importância da ludicidade para o desenvolvimento humano e social. Fez estudos de caso para mostrar o impacto na população de ações de incentivo à cultura e ao esporte, mencionando, por exemplo:
o Sesc SP, projeto privado que oferece atividades a todas as faixas etárias, normalmente sem cobrar nada, em centros espalhados pela cidade (peças de teatro, shows [a baixo custo], exposições, oficinas esportivas etc.);
Londres e todo o legado olímpico para a cidade após 2012;
e o Centro Cultural 104, instalado em uma região violenta de Paris para ser uma “usina cultural”. “Nos primeiros anos, as pessoas do bairro não se reconheciam no espaço. Estudei o que o novo diretor fez para conseguir começar a atrair os moradores para lá. Hoje, grupos locais de rap e break dance, por exemplo, ensaiam ao lado de idosos. É um lugar contagiante”, diz.
Agora, a intenção é implementar um projeto de ludicidade, semelhante aos examinados na dissertação, em algum município pequeno do Nordeste.
“A ideia é formular uma política pública para que a cidade se torne um grande Sesc”, conta Raí.
Ele ainda não sabe qual local receberá o projeto – nas redes sociais, recebeu várias sugestões. Até o cantor Chico César está em franca campanha para que Catolé da Rocha (PB), onde nasceu, seja a escolhida.
“Pode ser uma ideia interessante. Ainda estou na fase de estudos, mas sei que quero um município de 10 a 15 mil habitantes, para conseguir monitorar o impacto das ações na população. E [precisa ser] no Nordeste. Porque meu pai era cearense, e nós íamos todo ano para a periferia de Fortaleza. Tenho no sangue a cultura nordestina”, diz.
?Qual foi o gol mais bonito?
Raí comemora título acadêmico
Reprodução/Instagram
Os torcedores são paulinos provavelmente pensarão no gol de falta que Raí marcou contra o Barcelona na final do Mundial de 1992.
Mas o ex-jogador garante que também brilhou na universidade. Sua jogada mais bonita foi “levar para a academia toda a grande riqueza” do que aprendeu na Fundação Gol de Letra.
“O que eu aprendi no futebol e nos projetos sociais sobre realidades difíceis, violência e injustiças precisaria ser colocado nos estudos. Guardar isso só para mim seria um desperdício.”
Raí também fez sucesso no PSG, na França
Reprodução/L'Equipe
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Publicada por: RBSYS